AGRICULTURA E AMBIENTALISMO

Aino V. A. Jacques*


Professor Titular Aposentado/UFRGS

O título é proposital. É para ser agricultura e ambientalismo ao invés de agricultura versus ambientalismo. Produção agrícola sem responsabilidade ambiental a médio e longo prazos não se sustenta. Não pode existir antagonismo. Também precisamos produzir alimentos, pois não podemos viver só de paisagens. Nos velhos tempos, nos cursos de agronomia, dizia-se que toda a técnica economicamente errada era também tecnicamente errada. Nos tempos modernos aprendemos a dizer que toda a técnica ecologicamente incorreta deve ser descartada. Embora tenhamos um longo caminho para percorrer, em termos de práticas agrícolas sustentáveis, é preciso reconhecer que tem havido progressos nos últimos tempos. Mas é estranho que exista uma tendência a jogar toda a culpa pela poluição ambiental no setor primário. Como se as cidades, de um modo geral, fossem bons exemplos de cuidados com essa área.

No final da década de 1930, os Estados Unidos possuíam cerca de 121 milhões de hectares de terras agrícolas erodidas e degradadas. Com enormes perdas de solo e de água. A velocidade de perdas de solo era maior que a sua capacidade de recuperação. Essa área seria mais que quatro vezes a superfície do Rio Grande do Sul. Preocupado com tal situação, o congresso americano nomeou uma comissão de especialistas para estudar o assunto e apresentar soluções, cabendo ao Dr. Lowdermilk, do Serviço de Conservação do Solo dos Estados Unidos, presidi-la. Durante 18 meses, nos anos de 1938 e 1939, o grupo de especialistas visitou a Europa Ocidental, o Norte da África e o Oriente Médio, incluindo os seguintes países: Inglaterra, Holanda, França, Itália, Argélia, Tunísia, Egito, Palestina, Trans-Jordânia, Líbano, Chipre, Síria e Iraque. Antes dessa época, Dr. Lowdermilk havia permanecido na China por vários anos, estudando erosão do solo e problemas de uso das terras agrícolas. Ao retornar aos Estados Unidos, a comissão apresentou um relatório cuja essência encontra-se no boletim técnico “Conquista da Terra através de 7.000 Anos”, publicado em 1942. Esse trabalho forneceu as bases para recomendações de uso e conservação do solo nos Estados Unidos. Dr Lowdermilk, quando estava na Palestina em 1939, refletiu sobre os problemas de uso do solo através dos tempos. Ele se perguntou se Moisés quando foi inspirado a apresentar os Dez Mandamentos para o povo Hebreu no deserto para estabelecer as relações entre os homens e o Criador – se Moisés tinha previsto o que poderia acontecer com a terra da promissão depois de 3.000 anos e no que haviam se tornado centenas de milhões de hectares daquilo que uma vez foram consideradas boas terras agrícolas, como Lowdermilk pode observar na China, Coréia, Norte da África, Oriente Próximo, e nas terras agrícolas da America. Se Moisés tinha previsto o que uma agricultura suicida faria com a terra sagrada – não poderia ter sido inspirado a apresentar um outro Mandamento para estabelecer a relação entre o homem e a terra e para completar a trindade de responsabilidades com o Criador, com a comunidade de homens e com a terra sagrada?

Quando convidado para apresentar uma conferência sobre Conservação de Solo em Jerusalém, em junho de 1939, Dr. Lowdermilk apresentou pela primeira vez o que tem sido conhecido como o “Décimo Primeiro Mandamento: Tu deverás herdar a terra sagrada como uma fiel provedora, conservando seus recursos e produtividade para as futuras gerações. Tu deverás salvaguardar seus campos da erosão do solo, as águas correntes para que não sequem, as florestas para que não se tornem desoladas, e proteger seus pastos do sobrepastejo pelos teus rebanhos para que teus descendentes tenham abundância para sempre. Se algum desses deveres falhar nessa missão provedora da terra, os campos produtivos se tornarão terrenos pedregosos estéreis e vossorocas inúteis, e teus descendentes diminuirão e viverão na pobreza ou desaparecerão da face da terra. Os membros da comissão, nas suas andanças pelo mundo, observaram situações extremas – desde solos agrícolas com boa conservação – depois de milhares de anos de cultivos até situações de solos degradados devido às práticas inadequadas, mesmo em casos de agricultura relativamente recente. É desnecessário comentar o grande impacto que teve o relatório da comissão nomeada pelo congresso americano para o desenvolvimento da agricultura e, particularmente, para o desencadeamento de programas de uso e conservação do solo nos Estados Unidos e outros países.

No Rio Grande do Sul, nos anos 60, 70 e início dos anos 80, do século passado, a situação, mantidas as proporções, era bastante dramática e semelhante ao que ocorria nos Estados Unidos no final da década de 1930. Quem teve oportunidade de passar pela região do planalto médio nesse período, deve lembrar das cicatrizes e vossorocas que denunciavam o uso incorreto do solo e os efeitos da erosão. O professor João Mielniczuk da Faculdade de Agronomia da UFRGS, que participou ativamente dos programas de manejo e conservação do solo desenvolvidos no Estado, escreveu importante artigo sob o título: “Manejo do Solo no Rio Grande do Sul – Uma Síntese Histórica”. Com riqueza de informações e ilustrações, o autor retrata a situação da agricultura gaúcha na época e as diversas iniciativas que resultaram numa nova fase para o setor primário gaúcho. Primeiramente, foram levantadas as principais causas da erosão acelerada nos solos do Planalto Médio e Missões, que podem ser assim resumidas: 1 - Excessivo preparo superficial do solo com lavração e gradagens, "pé de pato" seguido de grade, ou simplesmente grade pesada, em mais de 95% da área cultivada com soja; 2 - Preparo de solo e tráfego de máquinas em condições de umidade excessiva; 3 - Queima dos resíduos das culturas de inverno (trigo) em mais de 80% da área cultivada nesta estação; 4 - Existência de extensas áreas de terra sem cultura no inverno (mais de 70% da área cultivada com soja) agravada pela eliminação da vegetação espontânea pelo uso de gradagem no inverno e primavera; 5 - O terraceamento como prática isolada de conservação do solo, muitas vezes mal projetado e construído com equipamento inadequado, era pouco eficiente, principalmente devido ao avançado estado de degradação física dos solos. Segundo Mielniczuk, “o agravamento da erosão, devido ao uso continuado destas práticas pelos agricultores, colocava em risco o próprio futuro da agricultura no Estado. Nesta época, muitas iniciativas foram tomadas abordando uma ou outra prática isoladamente. No entanto, essas ações isoladas não alteravam significativamente o comportamento dos segmentos envolvidos na produção agrícola. A solução do problema exigia a mudança de uma agricultura imediatista para uma agricultura conservacionista, que hoje seria denominada de sustentável”. No final da década de 1970 e início da década de 1980, depois de várias reuniões técnicas envolvendo pesquisadores, extensionistas e técnicos de diversas instituições do Estado, foi criado o “Projeto Integrado de Uso e Conservação do Solo”. Esse projeto foi centrado na capacitação dos extensionistas em práticas conservacionistas de manejo do solo, destacando-se: 1 - Redução do preparo do solo, com gradual retirada do arado e da grade e sua substituição por escarificadores, e, em etapas posteriores, adoção da semeadura direta; 2 - Eliminação da queima da palha do trigo e outros cereais de inverno; 3 - Introdução de culturas de cobertura do solo nas áreas sob pousio no inverno; 4 - Redução do tráfego de máquinas sobre o solo. Em linhas gerais, para a execução do Projeto, o Planalto Rio-Grandense foi dividido em três Regiões: 1 - Passo Fundo, abrangendo 13 municípios; 2 - Santo Angelo, abrangendo 14 municípios; e 3 - Palmeira das Missões, com 14 municípios. Numa avaliação das conseqüências da erosão do solo no RGS, a EMATER/RS fez uma estimativa de perdas de solo em 1980 e 1999, numa área de 5,9 milhões de hectares. Em 1980, as perdas de solo por hectare foram: 1,5; 3,5; e 12,0 toneladas com plantio direto, preparo reduzido e preparo convencional, respectivamente. Em 1999, para as mesmas formas de preparo ou plantio, as perdas de solo por hectare foram: 1,5; 3,5; e 11,0 toneladas, respectivamente. Enquanto em 1980 as perdas de solo eram de 8,0 toneladas por tonelada de soja produzida, em 1999 essa relação era de 2,7 toneladas de perdas de solo para cada tonelada de soja produzida.

Em artigo na Revista Time de 31 de agosto de 2009, que comenta a crise de alimentos nos Estados Unidos e como resolve-la, o autor Bryan Walsh descreve com detalhes a situação do modelo de produção americano e afirma que “ a maneira de cultivar a terra na atualidade é destrutiva para o solo, para o ambiente natural e para a própria população”. Entretanto, no mesmo artigo, comenta que um produtor na costa oeste americana cria o gado de forma sustentável na base de pastagens e feno. Mas, indaga se seria possível pagar pela melhor qualidade desse tipo de alimento. E o próprio autor responde: “deveríamos pagar pela qualidade de tal alimento”. É curioso que no Rio Grande do Sul, desde a década de 1630, a base de alimentação dos eqüinos e ruminantes domésticos seja a pastagem natural, cujo sistema é pouco valorizado e pouco explorado como estratégia de “marketing”.

A informação vem da internet, Globo Rural (2009). Uma das coisas mais preciosas de Nova York, que pouca gente sabe, é a excelente qualidade da água, graças a uma bem engendrada parceria com fazendeiros e proprietários de terras. Nova York ainda não tem estação de tratamento, só de filtragem. A cidade recebe 40 milhões de visitantes por ano. As pessoas bebem água pura da montanha e direto da torneira. As nascentes dos rios que abastecem Nova York ficam a 200 Km de distância na região montanhosa de Catskill a 1,200 metros de altitude, onde fica também a cidade famosa de Woodstock do festival de música de 1969. Nas negociações com os fazendeiros da região foi enfatizado o interesse mútuo, deixando claro que Nova York precisava de água pura e os fazendeiros precisavam manter suas propriedades rurais. Foram quase dois anos de negociação, encaminhada através de um Conselho formado por proprietários rurais que já investiu 100 milhões de dólares em benfeitorias nas fazendas de Catskill. Os fazendeiros aceitaram o desafio, mas exigiram três condições: 1- Nova York paga tudo; 2 – os fazendeiros administram os recursos e contratam os técnicos; e 3- a adesão é voluntária, o fazendeiro participa se quiser. O programa voluntário, em 15 anos, conseguiu a adesão de 95% dos proprietários rurais, cobrindo uma área de 500 mil hectares na região de Catskill. A poluição das fazendas de gado leiteiro, que era um dos principais problemas, está praticamente controlada. Para cada dólar investido na preservação do ambiente, Nova York economizou sete no tratamento convencional da água. Um projeto semelhante, mas de proporções muito menores, de estudo e recomendações de manejo do solo nas cabeceiras dos rios das Antas e Pelotas, no nordeste gaúcho e sudeste catarinense, sob a tutela da IGRÉ (ONG), não mereceu aprovação das fontes de financiamento sob o argumento de que o assunto não era prioritário.

Os desafios do aumento no consumo de alimentos e as demandas crescentes de energias limpas terão que ser enfrentados com ciência e tecnologia. Mas será necessário que o produtor rural tenha consciência de que é preciso produzir de forma sustentável para que possa produzir sempre. E que o poder público e a sociedade possam entender e valorizar o trabalho do produtor rural, buscando soluções que contemplem a participação e a cooperação entre os três segmentos. A interessante experiência com o tratamento da água na cidade de Nova York é um bom exemplo de entendimento e cooperação entre o poder público e os produtores rurais. Como disse o Superintendente do Departamento de Águas de Nova York, Albert Appleton: “Em vez de tratar o proprietário rural como predador da natureza, a idéia foi dar condições para que o mesmo fosse um guardião da natureza”.

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